Por José Aerton, para a coluna Por Linhas Tortas - 29/06/2021
"Eu não sei falar português". É incrível ouvir essa frase de um brasileiro nativo. Ela é dita por muita gente nesse país. Além de dizer, os falantes do idioma de Camões sentem realmente que não falam muito bem o português. Esse é mais um estigma que recai sobre os cidadãos brasileiros, em especial os mais pobres, que têm acesso apenas às precárias escolas públicas – o preconceito linguístico. Esse tipo de preconceito tem suas causas enraizadas no conceito elitista de que existe apenas uma única forma de se expressar numa língua e, no uso desta como instrumento de dominação, recurso amplamente usado por invasores e opressores ao longo da história da humanidade.
É completamente equivocada a crença na existência de uma língua pura, imutável e imaculada. As línguas sofrem transformações constantes assim como as sociedades. Sendo aquelas uma parte indissociável dessas, é razoável que mudem para se adaptar às novas demandas sociais, às interações entre os falantes, visto que esses são os agentes e pacientes ao mesmo tempo de qualquer alteração no corpo social. As demonstrações dessa verdade não são poucas ao longo da história. A civilização grega do passado, com seus filósofos e berço de tanto conhecimento, não se vê mais na Grécia de hoje, bem como o idioma grego sofreu muitas mudanças para se adaptar a esse novo mundo globalizado, tecnológico e tão dinâmico. Pensemos na sociedade escravocrata brasileira do século XIX, além da escravidão, do racismo, do conservadorismo, da misoginia, sofria com o atraso tecnológico, sanitário e educacional de sua época. Hoje, gozamos de um país moderno, com pesquisa de ponta em vários setores acadêmicos, sem escravos – ainda que não desprovido de racismo – e com muitas conquistas femininas. Toda essa transformação social por que passamos influenciou decisivamente na forma como nos comunicamos dentro do território nacional. Foi preciso que a língua portuguesa se adaptasse a esse novo país com as nuanças já citadas e muitas outras que se pode registrar a partir de um olhar um pouco mais atento; observemos palavras como “deletar” e “escanear” que não faziam parte do nosso léxico antes do advento dos computadores e das novas tecnologias. Assim, o conceito de pureza linguística se torna algo inocente, para dizer o mínimo. Basta que leiamos um texto escrito no século dezenove, com o português da época, para entendermos como se mostra tão diferente em relação ao falado e escrito hoje. São então as línguas fenômenos vivos, que se modificam, adaptam-se e se moldam aos ventos da sociedade na qual estão inseridas.
A esse equívoco se soma o fato de ser a língua um potente e eficaz instrumento de dominação. A história é repleta de exemplos que mostram a formação de impérios com a força bélica e de imposição do idioma do dominador. Foi assim com o império romano e com o britânico, para citar apenas dois. Dessa forma, quando se diz para os mais pobres e menos instruídos desse país, que eles não sabem falar bem o próprio idioma, se exerce sobre eles mais poder e consequente domínio. Tira-lhes assim um pouco de suas forças para enfrentar a opressão social e de organização em classes que lutem por seus direitos, visto que sua identidade está maculada pelo “não domínio" daquilo que o faria se sentir, se identificar como um cidadão em sua pátria.
Evidencia-se assim, o preconceito linguístico, o de achar que aquele que não domina o português gramatical não sabe se expressar bem na língua, que usa uma variante chula, vergonhosa e desvirtuada da “forma correta e pura de se falar e escrever”. O que vemos constantemente são ataques preconceituosos a construções gramaticais oriundas das classes menos favorecidas e, hoje de modo mais moderno, à forma de se escrever nos aplicativos de mensagens na internet. Quem assim se porta desconhece o conceito de variantes linguísticas, aquele que prevê a adequação do falar à situação comunicativa. Ademais, ignora o fato de não haver erro na língua falada, o que há são variantes diferentes usadas por extratos sociais diversos. Assim, um morador de um centro urbano de classe média alta vai se expressar diferente de um que more na periferia. Esse por sua vez não fala igual ao que vive no interior do Brasil, nos lugares mais remotos. Entretanto, há algo em comum entre eles, todos falam muito bem o português. Podemos provar esse conceito porque quando se expressam, todos nós os compreendemos. Aí está o grande valor da comunicação, se fazer entender.
Erra então quem alimenta o preconceito linguístico e diz para alguém que ela não sabe falar bem o português só porque essa pessoa não faz uso das normas gramaticais. Costumo exemplificar o personagem Chico Bento da turma da Mônica, ele não faz uso da norma culta, mas quando se expressa todo mudo entende. É esse personagem um falante competente da língua, o que ele não sabe é gramática. Então, todos os brasileiros falam sim muito bem o português. Se você os escuta e os compreende aí está a prova, ainda que o registro linguístico deles não esteja segundo a norma gramatical.
José Aerton é pernambucano, tem 49 anos e mora em Cabo Frio no Rio de Janeiro. Marido, pai e avô. Pós-graduado em Letras, atua como professor de língua portuguesa e italiana. Tem três livros publicados, dois deles de redação para o Enem e um de poesias e crônicas, segue inspirado e apaixonado pela arte da escrita. Como alimento para essa paixão, mantém a conta @joseaerton no Instagram.
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Eu amo estudar esse tema, temos tanto que aprender. Sua colaboração é tão rica, José. Só gratidão. 🌼