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A leveza da infância

Por Jonatas Perote, Maracaçumé/MA, 17 de outubro de 2025.

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Tentei não fazer nada na vida que envergonha a criança que fui.

José Saramago


O galo cantava impreterivelmente às 5h. Duas ou três vezes. Outros, em quintais diversos, respondiam. Os raios de sol chegavam logo após para acalentar as almas desesperançosas que assassinaram a noite sem dormir. A manhã leitosa chegava fria e orvalhada. Os cães ladravam ouvindo o canto do galo. O vendedor de leite, o de bolo e o de pão, completavam a ação, esgarçando a voz para serem ouvidos.

Os pesadelos incomodavam à noite, mas logo eram esquecidos. Proteção a favor das crianças. Papai levantava com o sol, punha água no fogão, aguardava ferver. Mamãe buscava o litro de leite, um tanto mais tarde. O cheiro da infância era o do café. Forte e doce. Reuniam-se os dois em volta da mesa, iniciavam seus cânticos, liam as sagradas palavras, levantavam a voz em oração. Ano após ano. Se gesto mecânico ou hábito, não sei, mas devotamente estavam ali.

Após isso, debaixo das cobertas, papai puxava pelo dedão do pé e chamava duas vezes para que eu fosse à escola. Ano após ano. Hábito gestual de carinho. Ele não costumava falar. A linguagem escassa de alguém calejado pela vida e, ainda assim, um forte. Sisudo. Mas orgulhoso o suficiente para aplaudir, a seu modo, as conquistas que pude oferecer.

A infância é esse período da vida em que as lembranças são recortadas por névoas. Fulgores frágeis e inconsistentes dos acontecimentos vividos. Longa o suficiente para querermos sair. Feliz o suficiente para desejarmos voltar. Hoje é um retrato colorido e feliz na parede. Não estamos mais dentro dela, mas sua permanência em nós sobrevive em um cantinho nostálgico, onde o tempo, adormecido, não passa.

Sem limites para correr, pular e chorar. Podia-se quebrar ossos, ralar a pele, causar arrepios nos adultos e, ainda assim, minutos depois, o riso estampado no rosto e a pulsante vontade de viver. Sem o peso do tempo e da vida. Estávamos no Paraíso, entre árvores e animais, em espécie de torpor. Mas, nosso fruto proibido, no meio do jardim, sempre foi crescer, tornarmo-nos adultos. A eterna ânsia de desejar a liberdade e a independência. Nosso calcanhar de Aquiles.

E, então, em um belo dia, somos os adultos. O sonho dá lugar à realidade. A correria entre árvores transforma-se em buscar trabalho e embrenhar-se no trânsito para pegar ônibus. O choro, tão escandaloso, mistura-se silencioso com a água que cai do chuveiro. E o riso fácil desaluga nossa face em meio às marcas de expressão da vida adulta.

Então enxergamos nossa prole, repetindo o mesmo gesto e buscando a expulsão do próprio paraíso. Não tenham pressa, aconselhamos. Vivam essa fase mágica, repetimos. Infelizmente, sons que não reverberam neles. 

Ainda lembro de quando pisava na terra molhada, de meu pai puxando meu pé, os cães latindo, os raros banhos de chuva na biqueira, o grito do leiteiro e o cheiro do café. Esses momentos me devolvem ao paraíso que perdi. Sinto que aquela criança ainda me observa, escanteada. 

A infância, assim como meu pai, são lembranças ditosas. 

Que as crianças queiram permanecer em seu paraíso o tempo que precisam.

Que os adultos saibam reviver a infância em meio ao caos.

Sobre o autor


Jonatas Perote é poeta, professor e habita o espaço entre o silêncio e o papel. Formado em Filosofia, encontra na escrita um modo de expurgo e resistência. Cada palavra, para ele, é uma tentativa de aliviar o peso do que não se diz — ainda que o vazio sempre retorne mais denso. Compartilha sua literatura no Instagram (@jonatasperote), onde lirismo, dor e contemplação existencial se entrelaçam. Tem obras publicadas pela Editora Frutificando, onde também assina esta coluna. Autor de "O Sopro do Vento e outras Poesias".



O Sopro do Vento e outras Poesias
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19 comentários

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Fs
18 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Excelente, Parabéns 👏🏼

Esse texto é uma viagem no tempo! Professor Jonatas Perote traz memórias da infância que fazem a gente querer voltar pra aquela época. O cheiro do café, o canto do galo, o pai puxando o pé... é tudo tão simples, mas tão especial. É um lembrete de que a infância é um período mágico e que a gente deve aproveitar cada momento.

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Jonatas Perote
18 de out.
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É verdade! Parece que conseguimos reviver as mesmas sensações!

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Convidado:
18 de out.

Emocionante! Obra Maravilhosa. Parabéns professor Jonatas! Ser criança é tão bom..... sentir os cuidados dos pais é incrível. Senti saudades da infância agora!

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Jonatas Perote
18 de out.
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Sim, é uma nostalgia incrível!

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Convidado:
17 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Que lindo, emocionante poder desfrutar desses momentos de recordações da infância tão importantes em nossas vidas!

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Jonatas Perote
18 de out.
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A infância sempre ficará guardada!

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Edmilda Vieira Sousa
17 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Parabéns! Sempre soube que você chegaria longe.

Um filósofo nunca me decepciona.

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Convidado:
17 de out.
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Minha mestra! Obrigado!

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Josiiane Matos
17 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Consegue-se viver com Jonatas essa infância novamente, a lágrima veio ao me lembrar de momentos vividos com tanta pressa nessa fase da vida! Meu amigo é um artista nato🥰

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Jonatas Perote
17 de out.
Respondendo a

A trilha da infância nunca se apaga! Obrigado Josi!

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