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Reféns do Relógio

Por Jonatas Perote, Maracaçumé/MA, 14 de junho de 2025.

Os passos têm pressa. Tem pressa a cidade. O zumbido das urgências ensurdece a todos. Ninguém consegue ouvir a sonata que sai do violino do homem alto, com remendos no terno. Uma criança, mais adiante, chuta uma lata. O senhor a repreende. Um cão com olhos vidrados no vidro do açougue sonha, como sonhou antes Baleia, em um mundo cheio de preás.

O homem sem casa dobra mulambos e farrapos calmamente: afinal, pelo que ele luta? Outra criança vende coisas nas ruas, equilibrando-se entre o real e os sonhos. A senhora do outro lado do semáforo aguarda uma mão amiga para fazer sua travessia —  a morte ao lado —  ninguém vê. O barulho de carros, motos e gente aumenta. A vida comprimida nas ruas da cidade que parecem não ter fim. 

Olhos que veem, mas pouco enxergam. 

O ônibus cruza a avenida cheio de silêncios, corpos exaustos e olhos que não se encontram. Veem através da vidraça as mazelas das ruas. Mortos. Calmos. Passivos. Sobretudo, cansados. Alguém põe o hálito — depois de 10 horas de trabalho — no vidro e desenha um coração que com rapidez desaparece, como se crime fosse. Outro não olha para lugar algum. Perdido. Atônito. Três cadeiras à frente, um velho tenta esboçar leve sorriso, que apenas lhe mexem as rugas e demonstra o rosto fatigado.

No alto da janela, uma senhora - abandonada pelos filhos - rega papoulas. Ela irá, em breve, reunir-se com eles uma última vez, mesmo que nada diga. Enxergarão em seu rosto o passar impiedoso do tempo, a solidão, as mãos encarquilhadas, as pálpebras caídas e bolsões abaixo dos olhos. As lágrimas estarão secas, a dos filhos, talvez, consternação.

Nas escadarias que levam ao bairro de baixo, um jovem assalta outro. Corre igual rato entre becos e vielas. O que bobeou perdeu o celular que dividiu em 24 vezes no carnê. Desolado, não consegue reagir. Ele senta na calçada cinzenta. A iluminação opaca dos postes reflete-se em um estranho mosaico de cores frias nas poças d’água. O cachorro enxovalhado se enxerga ali, mas logo é chutado. A aversão e a noite ruim. Se tivesse um cigarro, acenderia. 

A cidade não para. Não param os transeuntes. Saberiam dizer por que e pelo que correm? Ou correm para não dizer? O relógio continua a ditar seus passos. A cada vez que lhe puxamos a corda, ele nos rouba segundos, horas e dias. 

Somos reféns de um tempo que não nos pertence, embora nos tenha sido dado. E, ainda assim, fugimos da única realidade irremediável: tique, tique, tique… 

O fim das horas — no silêncio da eterna noite.


Sobre o autor


Jonatas Perote é poeta, professor e habita o espaço entre o silêncio e o papel. Formado em Filosofia, encontra na escrita um modo de expurgo e resistência. Cada palavra, para ele, é uma tentativa de aliviar o peso do que não se diz — ainda que o vazio sempre retorne mais denso. Compartilha sua literatura no Instagram (@jonatasperote), onde lirismo, dor e contemplação existencial se entrelaçam. Tem obras publicadas pela Editora Frutificando, onde também assina esta coluna.




3 Comments

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actavoli
Jun 14
Rated 5 out of 5 stars.

Sensacional. O tempo não para. Sucesso para o autor.

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Janaína
Jun 14
Rated 5 out of 5 stars.

Certeiro! Não paramos o relógio com medo de ele nos parar. Acostumados à pressa, temos pressa do fim. Sua escrita é sempre uma aula. Parabéns, Jonatas. Obrigada.

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Jonatas Perote
Jun 14
Replying to

Vivemos em busca de mais tempo, sem perceber que ele escapa de nossas mãos igual água! Nada pode deter sua passagem!


Obrigado Janaína!

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